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Quando uma pessoa explora seus sentidos, torna a existência uma “obra de arte”
A ação consciente do ser humano que atenta para as reações que o meio provoca nos órgãos sensoriais proporciona a compreensão do corpo e a expansão da inteligência vinculada aos sentidos. Tomar consciência de que o corpo é um laboratório de experimentos, e estudar as sensações como objetos significativos, que podem ser sistematizados por códigos identificadores, assim como fazemos com os objetos através dos códigos “alfa”, é o caminho para capacitarmos nossa inteligência a ler as sensações imateriais.
Seguimos a lógica proposta por Sandra Regina de Oliveira, pesquisadora na área da semiótica, que acredita que “Imagem também se lê”, assim como as palavras. Sandra propôs durante o Simpósio de Arte Educação da 6° Bienal do Mercosul a utilização de um conceito específico para a leitura de imagens. Suprimindo o prefixo da palavra alfabetização, transformou este conceito em “imagemização”. Podemos transferir esta lógica para o âmbito da sensorialidade, pensando que as sensações são códigos que podem ser lidos. Suprimindo o prefixo “alfa” e substituindo por “sensório”, transformamos este conceito adaptado à especificidade da leitura de sensações: a “sensoriobetização”.
Portanto temos que unir o que parece que nasceu separado: o plano da sensorialidade e o plano cognitivo. Desta união surge um terceiro plano: o “plano de experiência sensorial inteligente”. Para interpretar sensações precisamos fazer um esforço violento. Sandra Regina relatou que, quando lemos uma imagem, buscamos inicialmente sua estrutura. Um corpo humano tem a espinha dorsal, um edifício as vigas de sustentação, um barco as ripas de construção, enfim, o esqueleto do objeto. Aquelas linhas gerais que nos permitem identificar a imagem, sem a necessidade de ela estar representada em sua completude. Usando a mesma lógica para as sensações, podemos definir a estrutura destas como os pontos de alteração corporal que sensações específicas causam. O medo dá um frio na barriga, e não no pé. Estudar muito dá dor de cabeça. Correr infla o peito. Chorar alivia. A partir desta estrutura podemos pensar em atribuir conceitos a algo que tem caráter imaterial, que a principio não possui vínculo nenhum com a linguagem, para assim criar códigos significativos que nos sirvam como instrumentos de análise e reflexão. E o experimento tem validade, na medida em que não causa nenhum dano aos órgãos sensoriais. E para os puristas que rechaçam a codificação das sensações, digo que o valor da arte só será reconhecido socialmente se assim procedermos.
Quando uma pessoa sente algo ao se relacionar com o aparelho de fogão em sua casa e reflete sobre esse sentir, buscando o “histórico” do sentimento, atribuindo valores simbólicos aos elementos com os quais ela está se relacionando, ela “está viva”. Traz à tona os detalhes que estão por detrás daquele sentir. Pode parecer bobagem fazer isso, mas a qualidade de vida que se ganha qualificando os sentidos dessa maneira faz um bem danado. E o exercício continuo da sensorialidade, submetida à análise cognitiva, é que proporciona a qualificação do “corpo”.
A tendência geral de desprezo para com o próprio “corpo”, mesmo que de maneira inconsciente, está confirmada como algo normal para a maioria das pessoas. Por isso este assunto causa desconforto para alguns. Mesmo no meio artístico as pessoas não se submetem a tal qualificação. Ensinar as pessoas a sentirem e a refletirem sobre elas mesmas é o papel atual da arte-educação.
Acreditar no potencial do corpo como um laboratório que recebemos de presente, do qual temos total responsabilidade e propriedade, e usá-lo de maneira sistemática para qualificá-lo é uma escolha inteligente. Não precisamos fazer experimentos durante todo o dia, bastando reservarmos alguns momentos de dedicação. Ao caminharmos numa rua pelo centro de Porto Alegre, por exemplo, temos essa oportunidade experimental. Comecemos por escutar e sentir o ar que respiramos. Ele tem textura delicada quando caminhamos lentamente, e o som quase imperceptível. Se apressarmos o passo, ocorre uma alteração nas características desses “elementos acionários” da sensorialidade. Daí o vínculo direto do “espectador” com a “obra de arte”. Somos nós que determinamos a qualidade da “obra”, através de nossas ações comportamentais diante daquilo com o que nos relacionamos. Outros muitos aspectos estão envolvidos nessa situação experimental, que a princípio não precisam ser notados: nossos pés tocando o chão, nossos braços se movimentando, o som das pessoas conversando. Paulatinamente vamos aumentando o número de elementos apreendidos no experimento. O grau de dificuldade vai aumentando assim que conseguimos ser absorvidos pelo processo.
Perceber sensorialmente não é tão difícil. Afinal nossos sentidos estão em choque direto com a materialidade dos elementos que constituem o mundo donde estamos inseridos. Difícil é transformar essas sensações apreendidas pelos órgãos sensoriais em códigos analisáveis pela cognição. Isso exige um alto grau de dedicação ao experimento. As palavras soam estranhas, pois adaptar conceitos a sensações abstratas, como já foi dito, tem algo de “artificial”. É com o passar das existências que rompemos os limites da materialidade que embota nossos sentidos e pensamentos.
Nesta perspectiva de pesquisa da própria sensorialidade, podemos aprofundar saberes a respeito de processos artísticos. O que sentimos quando estamos pintando? Que alterações ocorrem na parte física de nossos corpos? -Quem não se impressiona ao ver um artista trabalhando, submerso em seu processo de criação? O que passa na cabeça dele, e o que está sentindo naquele momento? Isto só ele pode dizer. Isto só nós podemos relatar. Nenhum ser externo ao sentir pode descrevê-lo. Isso é o que temos de mais nosso, e é o que ninguém pode tirar.
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